Glauber Piva
Malandro
Leu Macunaíma como quem compra peixe na feira-livre de domingo: com chinelos Havaianas e bíblia escondida na alma, recitando os parágrafos como se lesse os preceitos divinos de cada dia.
Lembrou-se de José e seus irmãos, de Moisés e seu cajado, de Jiguê e a Muiraquitã. Perdeu-se no tempo e pensou no país. Misturou personagens e entendeu que o Brasil nasceu de uma grande confusão de gente esquisita e máquinas com sotaques estranhos.
Preguiçoso absoluto, manteve os olhos vigilantes às trairagens do mundo e entendeu que malandragem, quando é demais, engole o malando no chá-das-cinco com bolachas e vaselina. Ui!
Leu Macunaíma como quem compra peixe na feira-livre de domingo: com chinelos Havaianas e bíblia escondida na alma, recitando os parágrafos como se lesse os preceitos divinos de cada dia.
Lembrou-se de José e seus irmãos, de Moisés e seu cajado, de Jiguê e a Muiraquitã. Perdeu-se no tempo e pensou no país. Misturou personagens e entendeu que o Brasil nasceu de uma grande confusão de gente esquisita e máquinas com sotaques estranhos.
Preguiçoso absoluto, manteve os olhos vigilantes às trairagens do mundo e entendeu que malandragem, quando é demais, engole o malando no chá-das-cinco com bolachas e vaselina. Ui!
***
Jogador
Gostava das vitórias, mas os artifícios do jogo lhe davam prazeres incalculáveis. A troca de olhares, a conversa medida, o toque inesperado... Alimentava-se da expectativa de romper o nunca invadido, de apresentar o não-anunciado.
A vítima, como chamava em silêncio, não precisava ser bonita, ter peito empinado ou celulite futura, mas tinha de oferecer-lhe recompensa ao risco, pagar-lhe a reputação. Após a ressaca moral, merecia o auto-perdão.
Passou por mãos e olhares, perdeu-se em curvas fatais. Tudo com silêncio e satisfação. Sempre coerente, o drible lhe encantou mais que o placar. Assim ganhou fama, perdeu o respeito, ficou sem troféu.
Gostava das vitórias, mas os artifícios do jogo lhe davam prazeres incalculáveis. A troca de olhares, a conversa medida, o toque inesperado... Alimentava-se da expectativa de romper o nunca invadido, de apresentar o não-anunciado.
A vítima, como chamava em silêncio, não precisava ser bonita, ter peito empinado ou celulite futura, mas tinha de oferecer-lhe recompensa ao risco, pagar-lhe a reputação. Após a ressaca moral, merecia o auto-perdão.
Passou por mãos e olhares, perdeu-se em curvas fatais. Tudo com silêncio e satisfação. Sempre coerente, o drible lhe encantou mais que o placar. Assim ganhou fama, perdeu o respeito, ficou sem troféu.
***
Saudade
Longe de casa se parecia com ninguém. Era único. Amigos, restaurantes e beijos lhe davam alegrias, mas não lhe ofereciam a cumplicidade do seu quintal. Perguntava-se pelo que faltava. Não podia traduzir. Sua identidade fora forjada com ferro especial. Diferença que só brasileiro pode entender.
Como se fosse carimbo na alma, trazia nas narinas o cheiro de terra molhada que conhecera na infância; nos ouvidos o grito da mãe mandando banhar-se; no fundo dos olhos o brilho do céu do hemisfério sul. Iluminou-se.
Com a memória em beliscões, tirou a camisa e gritou: “ai... que saudade!”
Ninguém entendeu nada. “Foda-se!”
Longe de casa se parecia com ninguém. Era único. Amigos, restaurantes e beijos lhe davam alegrias, mas não lhe ofereciam a cumplicidade do seu quintal. Perguntava-se pelo que faltava. Não podia traduzir. Sua identidade fora forjada com ferro especial. Diferença que só brasileiro pode entender.
Como se fosse carimbo na alma, trazia nas narinas o cheiro de terra molhada que conhecera na infância; nos ouvidos o grito da mãe mandando banhar-se; no fundo dos olhos o brilho do céu do hemisfério sul. Iluminou-se.
Com a memória em beliscões, tirou a camisa e gritou: “ai... que saudade!”
Ninguém entendeu nada. “Foda-se!”
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Sapateira
Filha de remediados pais separados, visitava o mundo-da-lua comprando sapatos. A cada semana, dois ou três novos pares inundavam seus caminhos. Com dependência insaciável, passou a traficar ingressos para desfiles e roubar modelitos exclusivos de lojinhas super-in.
O pai quis interná-la, mas o delegado exigiu flagrante. A mãe quis vigiá-la, mas achou que seria quadrilha. Os irmãos, cheios de inveja, encomendaram tênis de marca. Até as amigas, que fingiam não perceber, organizaram as filas dos empréstimos e aluguéis.
Tomou remédios, fez terapia, visitou a polícia, abriu concorrência. Quando quis mudar de vida, já era tarde: acostumara-se ao cheiro de chulé.
Filha de remediados pais separados, visitava o mundo-da-lua comprando sapatos. A cada semana, dois ou três novos pares inundavam seus caminhos. Com dependência insaciável, passou a traficar ingressos para desfiles e roubar modelitos exclusivos de lojinhas super-in.
O pai quis interná-la, mas o delegado exigiu flagrante. A mãe quis vigiá-la, mas achou que seria quadrilha. Os irmãos, cheios de inveja, encomendaram tênis de marca. Até as amigas, que fingiam não perceber, organizaram as filas dos empréstimos e aluguéis.
Tomou remédios, fez terapia, visitou a polícia, abriu concorrência. Quando quis mudar de vida, já era tarde: acostumara-se ao cheiro de chulé.
* Também postado no blog de Glauber Piva: www.glauberpiva.blogspot.com
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