terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Na humildade

Eu faço isso sempre sem livre arbítrio
não é por escolha
é como a gravidez
uma hora o filho sai

Eu faço isso
por amar em excesso
por gostar de quem faz verso
e tarda em se conhecer
por ser
um poço sem fim

eu faço isso
enfim
não é por me sentir capaz
Refaço
mesmo sabendo que
não tem como refazer
o mesmo neném

to tentando fazer isso
pra ver se entre cem
uma é capaz de explodir com a força
que tem

essa força cega tateante
desorganizada que não sabe pra
onde vai
pq a força e o amor de uma
mulher sempre começa pelo carinho de pai

De dentro pra fora já
Não flui nada mais
Leiloei minha sanidade
quem pode me ajudar mais?

quem já não se viu neurótico
pegando migalha?
esquecendo de si?

quem não se viu assim, amigo
ainda nao viu nada
ou então é  peça rasa
não é poço é poça
é poça d’água

Que não mata a sede
da mendiga que sou
porque eu não tenho vaidade
mas tenho sede de soul
de alma
e de flow

eu faço isso
pra sustentar o meu desejo
porque arte não da sustento
mas preciso dizer o que sinto
o que penso
o que vejo

eu faço isso
pra controlar minha loucura
pois me chamam  neurose
mas eu tô sóbria  tô lucida
e esperta

e não é preciso ser médium nem louca
pra saber que sua lei é inversa
e esperar pelos seus erros desperta

E na Madrugada insônia
Acabo com isso
Ensopada de chuvas de dores
Rendida sentida
Pois agora oque me resta ...pinga...

Nadja Estevez

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

100 palavras

Glauber Piva

Malandro

Leu Macunaíma como quem compra peixe na feira-livre de domingo: com chinelos Havaianas e bíblia escondida na alma, recitando os parágrafos como se lesse os preceitos divinos de cada dia.
Lembrou-se de José e seus irmãos, de Moisés e seu cajado, de Jiguê e a Muiraquitã. Perdeu-se no tempo e pensou no país. Misturou personagens e entendeu que o Brasil nasceu de uma grande confusão de gente esquisita e máquinas com sotaques estranhos.
Preguiçoso absoluto, manteve os olhos vigilantes às trairagens do mundo e entendeu que malandragem, quando é demais, engole o malando no chá-das-cinco com bolachas e vaselina. Ui!
***              
Jogador

Gostava das vitórias, mas os artifícios do jogo lhe davam prazeres incalculáveis. A troca de olhares, a conversa medida, o toque inesperado... Alimentava-se da expectativa de romper o nunca invadido, de apresentar o não-anunciado.
A vítima, como chamava em silêncio, não precisava ser bonita, ter peito empinado ou celulite futura, mas tinha de oferecer-lhe recompensa ao risco, pagar-lhe a reputação. Após a ressaca moral, merecia o auto-perdão.
Passou por mãos e olhares, perdeu-se em curvas fatais. Tudo com silêncio e satisfação. Sempre coerente, o drible lhe encantou mais que o placar. Assim ganhou fama, perdeu o respeito, ficou sem troféu.
***
Saudade

Longe de casa se parecia com ninguém. Era único. Amigos, restaurantes e beijos lhe davam alegrias, mas não lhe ofereciam a cumplicidade do seu quintal. Perguntava-se pelo que faltava. Não podia traduzir. Sua identidade fora forjada com ferro especial. Diferença que só brasileiro pode entender.

Como se fosse carimbo na alma, trazia nas narinas o cheiro de terra molhada que conhecera na infância; nos ouvidos o grito da mãe mandando banhar-se; no fundo dos olhos o brilho do céu do hemisfério sul. Iluminou-se.

Com a memória em beliscões, tirou a camisa e gritou: “ai... que saudade!”

Ninguém entendeu nada. “Foda-se!”
***
Sapateira

Filha de remediados pais separados, visitava o mundo-da-lua comprando sapatos. A cada semana, dois ou três novos pares inundavam seus caminhos. Com dependência insaciável, passou a traficar ingressos para desfiles e roubar modelitos exclusivos de lojinhas super-in.
O pai quis interná-la, mas o delegado exigiu flagrante. A mãe quis vigiá-la, mas achou que seria quadrilha. Os irmãos, cheios de inveja, encomendaram tênis de marca. Até as amigas, que fingiam não perceber, organizaram as filas dos empréstimos e aluguéis.
Tomou remédios, fez terapia, visitou a polícia, abriu concorrência. Quando quis mudar de vida, já era tarde: acostumara-se ao cheiro de chulé.
*  Também postado no blog de Glauber Piva: www.glauberpiva.blogspot.com

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Carmo

Minha vizinhança
quero - a paz dos passarinhos - quero
tempestade e bonança

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Latejar

João F. Quirino

Misturadas, água e lágrima escorriam pelo corpo. O ódio e um sentimento obscuro a mostrar-se como culpa – “Por que culpa, meu Deus?” – escorriam pela alma. Cabeça a latejar. O tapa, o tapa, o tapa. Em compasso com o palpitar nervoso do coração. Também pulsava, ininterrupta, a sentença: “Vagabunda! Vagabunda!”. Maldito mantra. Teria quisto, merecido, provocado? “Tantas perguntas, meu Deus!” Era lindo, mas não o queria. A amiga, sim. Quem sabe, sendo lindo, devia também querê-lo. Devia, devia? Só que a amiga o viu, chamou-lhe, era dela. No entanto, apontou-lhe o banco de trás do carro importado. Banco de couro. A si, mandou sentar-se na frente. Mandou, mandou! Do banco de couro, sorriu amarelo à amiga: “Que posso fazer, ele mandou”. Só carona, mais nada. Fantasia emprestada, assim, destruída. Será sangue esse vermelho? Aceitou a carona, ficaria em casa. Da amiga, sim, seria o carnaval. Ducha fraca, nem o corpo lavava.
Ecoava a voz do irmão: “Puta, sua puta!”. Retrucava: “Quem é você?”. “Sou homem, posso!”. Posso, posso, posso... Latejava o tapa que se seguiu à recusa. Àquele seguiu-se a voz que vibrava, no ritmo da dor: “Para todos, menos para mim?!”. Não, não queria. Não assim. Era lindo, mas não assim. A imagem da amiga, derrotada: “Escolheu você; é seu o carnaval”. O carro, tão raro no subúrbio. Maldito banco de couro. Pediu que a deixasse também; indiferente, partiu. Ameaçou gritar, saltar, ceder. Lindo, lindo... Então, o tapa – “Para quê o tapa, meu Deus?” –, o estrondo, a dor, o medo, a entrega. O toque forçado, a carne invadida, o gozo sem gozo, a alma humilhada... a fantasia rasgada. Fantasia? O tapa latejando qual a voz da mãe: “Quer emprenhar de moço rico, quer?”. Nem pensar. Tirava, tirava. Só queria viver. Ser feliz... feliz. Sumir dali de uma vez por todas. Queria escorrer pelo ralo. Como a lágrima que caia dos olhos e a água, do chuveiro. Inútil. Continuava a se sentir imunda.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Os Almeida

Pedro Aragão


Cinco pessoas:
Se condensam?
Se completam.
Se convencem...
Se combinam,
Se conversam;
Se contemplam!

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

(Pag)ode à nova classe

Éder Menegassi

A velocidade das escadas rolantes estão aquém da nossa pressa.
Mendigos querem, exigem, pizza e churros. Portuguesa e doce leite.

Transformaremos nossa quebrada em bairro nobre nem que pra isso devamos ter aqui uma, uma... uma locadora! Só com clássico. É, superomi, batima, voverine. Só os loko, só os frenético. Aí é vida!
A gente ezige, porra! Uma biblioteca com vários cd de fank, que é pra gente treinar interpretação de texto.

Tú vem com a borracha
que eu abro o meu  caderno
cdf, vem com tudo
faz verão no meu inverno

Molha o dedo na língua
e vai virando a folha
Vê se me rabisca toda
antes que o lápis encolha

Interpretação do que? Céloko. Sou mais umas oficina pra nóis tuná as nave. Aí é vida! É disso que eu tô falando!

Ixi ó, suave. Arrumei um trampo novo. Firma de marketing. O que vai funcionar lá. Eu mesmo trampo na obra.
Segunda à sexta, suave. Fim de semana é só no rolê. As novinha tudo querendo, mulekote.
Aí é vida! É disso que eu tô falando!

Os pais preocupados resolvem agir. Faixa esticada na rua principal: Aviso aos filhos: Disparos à noite, esgoto à céu aberto, biblioteca sem livros.
Nada alude à prosperidade do nosso futuro. Consumamos.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

As lágrimas do palhaço

As cismas do Chico Margoso

João F. Quirino

Chico nasceu em tempo longínquo e lugarejo idem. Sétimo de família honesta, feita na lida sol a sol, Chico contou o exato filho do meio de dona Oscalina mais sô Jeromo. Antes e adiante dele vieram seis. Quem é escolado na cidade não enxerga o engenho da sorte. Ser o mediano de treze irmãos é condição sabida do dedo agourento do destino. Pois o Chico fez-se feio qual o cão: vida toda mirrado, feição de bicho do mato, fuça de caitatu, sobrancelha una, sem entremeio de pele, boca de velha banguela, quase todo pelado de cabeça e peito, olho zambaio. Não era só feitio de menino por pouco crescido, à espera do tempo que lhe trouxesse formosura alguma. No caso do Chico, o tempo passou demais sem lhe consertar o aspecto, sem lhe amparar em parca boniteza. Não tardou, a molecada da vila impingiu no coitado a alcunha de margoso que, à primeira zanga de contrariedade, pegou para nunca mais sair. Assim registrou-se no conhecimento do povo, Chico Margoso.

Ainda novo, mas já formado de labutar em ajuda do pai e de ter couro de levar guasca na bunda para remédio de arte feita, o Chico revoltou-se do fadário. Desatou a rogar pragas a torto e direito e, sacrilégio maior, a maldizer o todo-poderoso, baldado de gozo das coisas por conta de tamanha fealdade. No exato dia em que completou quatorze anos, veio à mente daquele hominho parvo uma ideia que lhe enfeitiçou o juízo qual façanha do tinhoso: só tinha morte honrada de cabra macho, ainda que vivesse vida longa, vaso ruim, caso se casasse com uma paraguaia e matasse um homem. Não importava a ordem. Fosse qual fosse a paraguaia. Fosse qual fosse o homem.

Com dezoito anos, caiu de amores tão-logo avistou Guadalupe, filha do peão recém chegado de bandas mato-grossenses. Não era malfeita de cara e corpo, tampouco ostentaria coroa de misse. A rapariga era, por assim dizer, nem cheira, nem fede. Só que para o Chico era a mais graciosa criação de nosso senhor. Tanto insistiu que o velho peão seu pai, viúvo de nome Ambrósio, agradou-se do Margoso e concedeu a mão da filha em casamento. De mais a mais, Guadalupe era fraca das idéias, não lhe entrava ensinamento fácil na cachola, e o peão avistou em Chico amparo à descendente amalucada, além de liberdade para que ele próprio vivesse derradeiras aventuras. Só não revelou ao futuro genro o fraco da filha pancada: moça, moça, já não era, e costumava não resistir a homem feio. Explicado esteja.

Chico casou-se no dia em que seria o terceiro mais feliz de sua vida. O segundo foi o seguinte, o da lua-de-mel, não por causa apenas da luxúria consentida pela santa madre igreja, mas pelo que descobriu da boca da esposa. Confessou-lhe Guadalupe, ainda no leito de núpcias, ato contínuo à consumação do matrimônio, que a mãe morrera ao colocá-la no mundo, fardo pesado a carregar na alma. Disse também – motivando o regozijo do marido – que o parto e a morte não se deram em Ponta Porã, onde vivia a família, mas em súbita passagem por Pedro Juan Caballero. Sem entender o porquê, Guadalupe notou lágrimas a quedarem do estrábico cônjuge, emocionado de dar pena por sabê-la paraguaia pela terra onde caiu o umbigo, embora o sangue nele a jorrar fosse seu compatriota.

Anos passados, assumida a rotina de casal, eis que o Chico ao entrar em casa, retornado da labuta, deparou-se com cena terrível. Guadalupe na cama, como Deus lhe fez, de saliência com um caboclinho que elevava o Margoso a galã de novela. Tanto que Chico sentiu mistura de ódio, com desonra de corno e pavor da criatura que por instante duvidou ser do seu planeta e de sua espécie. O sujeito, ligeiro que só, sem esperar por nada, nem bronca, nem luta, sumiu em disparada janela afora. Visse o povo aquilo assim, entidade do demo, nu em pelo, em desabalada carreira, juraria tratar-se de chupa-cabra legítimo. Passado o susto do feioso e da vergonha, subiu no Chico vontade bruta de derriçar a libertina guarani, despelar todinha como se faz com milho. Espiou de través e enxergou a garrucha herdada do pai para caças e proteção do lar. Tomou-a em mãos e, tremendo mais que vara verde, percebeu o dedo empurrar o gatilho. A mira errou por muito, mas a bala varou pelo buraco da janela e, por explicação que ciência desconhece, feriu de morte o caboclinho fugitivo, afastado uma légua. 

Nosso protagonista podia ter matado a esposa, não o fez por Deus. Dito assim, até soa profanação: Chico teve certeza de que suas cismas vinham do pai eterno, não do belzebu, como suspeitava. E a derradeira cisma era certa: matar homem, não mulher. Salvou-se Guadalupe com graça divina e o Chico, agradecido, perdoou-a, assim como foi perdoado pelos senhores de toga com uma prosa de legítima defesa.

Faz mais de ano que o Chico matou o homem. Foi o dia mais feliz da sua vida.

***

Em tempo: Chico Margoso realmente existe e, de fato, sempre falou das tais cismas. Pelo que sei, todavia, Chico jamais matou nem esposou alguém.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Rápido e dolorido

Debora Carb

Ela não havia nascido para viver nesse tempo cheio de grandes invenções e modernidades. Nesse mundo em que a notícia ruim te alcança rápido demais. Em que a tristeza te acompanha por todo caminho, ao invés de te receber em casa. As boas sempre esperam. A mãe gosta de surpreender com chá, bolinho de chuva e a boa notícia. Mas as más...te pegam no meio da reunião, por mensagem de texto e voltam pra casa ao seu lado. As más cobrem teu coração como um véu que cobre o rosto da viúva. O choro, a angústia, não podem ser abafados no vazio do seu quarto, escondidos no escuro...

Ela saiu do trabalho e rezava pra fazer o trajeto sem pensar, cada movimento parecia robótico pra se encaixar no padrão pré-estabelecido, por ela mesma, da normalidade. Mas ao se sentar no mesmo banco de ônibus fretado de todo dia, ao ver as mesmas pessoas de todo dia, sabendo que aquele era diferente de todos os outros dias...não havia frieza o bastante dentro dela.

A cidade foi platéia de cada lágrima que caiu pelo teu rosto. Lágrimas saudosas do anonimato, envergonhadas pela exposição, mas ávidas de liberdade.

De Sá Finado

Pedro Aragão 

Outro dia, parou na janela e os vizinhos já sabiam: vai começar a cantoria. De Sá não perdoava, cantava, rasgava o gogó diariamente. Sua voz; bem, digamos que era exclusiva, exclusivamente ruim. Mas não haviam críticas que pudessem parar o galo da pensão. O adjetivo galináceo era só um exemplo de sua fama. E quando começava era o mesmo ritual, som, teste, lalalá, lá ia Joaquim de Sá entoar seu repertório vasto que passava de Jazz novaiorquino até Forró de bar. Era um rapaz normal, dormia bem, comia o necessário, futebol aos Domingos, trabalhava em uma mercearia - por isso era bem conhecido -, guardava atrás da porta seu chapéu clássico e casual - só guardava, não usava, sabe como é, status - e morava sozinho, a essa altura, o digníssimo leitor já imagina o porque. Joaquim tinha certeza de que era dotado de uma voz de veludo. Mal sabia ele, que seriam suas cordas vocais que mudariam sua vida, ou melhor sua morte. Outro dia - aquele dia, mesmo, do começo - Joaquim começara os procedimentos de sua récita. Selecionava a playlist de forma aleatória, o que viesse na cabeça, cantarolava. Começou com Bossa Nova, o dia era bonito, o sol não estava tímido, pedia alegria. Maria, sua vizinha de parede, correu atrás do tapa-ouvido. A cada verso, Joaquim tentava exprimir a emoção que sentia, e como ficava emocionado. Pelo menos, dentro dele, a música alimentava seus anseios, dúvidas, tristezas. Mas já eram onze da manhã, De Sá percebeu que a fome agora, era de comida. Tentou, sem sucesso, colocar a água pra esquentar, pois sua dispensa estava disritmada, faltavam fósforos. Foi à mercearia que trabalhava cantando Bocelli - a escolha foi temática dessa vez, iria preparar um espaguete. Fósforos comprados, e lá estava Joaquim, feliz da vida, rodopiando, se preparando para cozinhar as orelhas dos vizinhos. Ligou o rádio. Cosmic Blues no último volume pra temperar a macarronada. Quando acendeu o fósforo, boom! Seu quartinho explodira. Não sobrou um teco de Sá. A perícia informou que Joaquim esquecera o gás aberto e vazando.

N'outro dia, seu velório estava cheio, parecia um concerto. O choro era como música.