segunda-feira, 9 de abril de 2012

Retirada de objeto

João F. Quirino

Sete meses de relacionamento intenso. Muita paixão no começo. Muitos encontros, muito contato. Muito sexo, sobretudo. Também, muito desgaste. Especialmente para ele, acostumado à liberdade. Alegou estar sufocado. Para ela, tudo aquilo era novidade; encontrava-se submissa de corpo e alma. Perdidamente entregue, envolvida pelo romance avassalador. Jamais imaginaria que ele, num ímpeto inexplicável, colocasse um ponto-final em tudo.

"Paramos para retirada de objeto dos trilhos”.
Ele olhou para o relógio e rogou praga. “Porcaria! Sempre assim: problema técnico, lentidão, atraso”. O coelho de Alice parecia gritar no seu ouvido: “Estou atrasado, estou atrasado, estou atrasaaaaado!”. Pensou pela enésima vez no telefonema da noite anterior. Ela, longe da pobre coitada de anteontem a mendigar mais uma chance, pediu-lhe um encontro usando palavras decididas e voz firme. Nos sete meses em que estiveram juntos, costumavam se encontrar na hora do almoço, sempre no restaurante a quilo próximo ao trabalho dela. Praticamente engoliam a comida e corriam para o hotelzinho ao lado, um manjado hospedeiro de prostitutas e drogaditos. Algo irrelevante frente à urgência de se amarem loucamente, ainda que por poucos minutos.
“Paramos para aguardar a movimentação do trem à frente”.
“Diabos! Vou chegar atrasado ao trabalho”, advertiu-lhe o coelho de Alice. Olhou para o casal de jovens estudantes sentado em assento preferencial – “juventude alienada!”, condenou. O garoto de brinco indígena e a menina de espinhas passageiras e beleza promissora vestiam uniformes de colégio batista e se lambuzavam numa interminável sucessão de beijos de novela – “juventude indecente!”. Para os dois, a lentidão do trem era mais que bem-vinda. Certa inveja foi inevitável, assim como o desejo de um último encontro... “Não, chega!”, determinou a si próprio. “Ordem dada, ordem cumprida!”. Até porque seria impossível: precisava retornar de imediato ao trabalho (andava mal cotado com o novo chefe) e o encontro seria em plena estação do metrô, perto das catracas. Aliás, por que ela queria vê-lo na estação do metrô? Não fazia sentido. Talvez por duvidar que seus corpos tolerassem inertes à proximidade recíproca. A sós, sem a patrulha de uma multidão, certamente não suportariam o clamor da lascívia. Ou, talvez, ela realmente almejava uma conversa somente: as últimas palavras de lamúria, as derradeiras juras de amor eterno, a finalíssima tentativa de reconciliação. Quem sabe, ainda, tencionava um grand finale colérico em que jogaria na sua cara o quão cafajeste e repugnante se revelara. A estação seria propícia a um escândalo passional. Fosse o que fosse, fizesse o que fizesse, a respeitaria, resignado.
“Os trens estão com velocidade reduzida e maior tempo de parada”.
Olhava seguidamente para o relógio ao mesmo tempo em que a voz decidida do telefonema e a voz insolente do coelho confundiam-se em sua cabeça. Ela estava eufórica com namoro, lembrou-se. Chegara a sugerir casamento, o que lhe fez concluir que as coisas haviam passado dos limites. Estranhíssimo o tom seco, quase indiferente, com que falou ao telefone – “Quero que me encontre na estação República, amanhã, às treze horas”. A voz entoou sólida, com autoridade, sem pestanejar; quem falava era uma pessoa absolutamente sabedora das suas intenções. Arguida, não deu pistas do que tencionava fazer ou mostrar. Apenas insistiu para que ele não faltasse, “custe o que custar”. Ele, acometido de um ligeiro peso de consciência, jurou que só não honraria o compromisso em caso de sequestro ou morte. Ela repetiu a última palavra – “morte” –, despediu-se com um monossilábico “tchau” e desligou. Treze horas, mesmo horário em que se encontravam no restaurante a quilo. A súbita imagem das prostitutas do hotel causou nele uma excitação jamais sentida. Por um instante, desejou que ela fosse uma daquelas prostitutas.
“Paramos para retirada de objeto dos trilhos”.
Até o casal de estudantes já se incomodava com a situação. O som de um zunido elevou-se à medida em que os passageiros multiplicavam resmungos. Ameaças de processar a companhia de metrô somaram-se às rogações para que esposas e patrões fossem indulgentes ante o atraso. Distanciado dos lábios da moça de beleza promissora, o rapaz de brinco indígena foi capaz de balbuciar algumas frases: “Já ouvi dizer que essa estória de objeto nos trilhos é lorota. Na verdade é gente que se joga, se mata. Tem suicídio à beça no metrô, sabia?”. A garota, cansada e faminta, não esboçou reação diante do mórbido relato. Ao contrário do nosso protagonista, cuja espinha gelou e o coração quase saiu pela boca. Após retomar o fôlego, olhou para o relógio em atitude mecânica, sem atentar para as horas. A fala resoluta da mulher na véspera soava como uma bomba. Afinal, o encontro na estação República passara a fazer algum sentido.

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