Poucos lugares são tão insalubres quanto a praça de
alimentação de um shopping center na hora do almoço. Para Clara, o
almoço é um afazer tormentoso, não um momento de descanso. Preferiria trabalhar
as oito horas ininterruptamente. Após longos dez minutos de tentativas
infrutíferas, radicalizou: sentou-se no chão para devorar o insosso fast
food. Mais do que o desconforto para comer, incomodava-lhe a câmera no
canto alto esquerdo; parecia persegui-la, vigiando sua conduta, julgando seus
modos “à mesa”. Se falasse, a câmera diria: que homem é capaz de suportar uma
mulher que come sentada no chão de um shopping center?
Finda a refeição, depositou o lixo no local apropriado, tal
qual um adestrado frequentador de McDonald’s. Pediu um café no quiosque ao lado
e abriu o livro cujas páginas percorria a duras penas. Não que lhe fosse
custosa a leitura. Pelo contrário: adorava livros e, em especial, adorava
Gabriel Garcia Márquez. Mas era obrigada a admitir: esse texto não lhe apetecia
como os demais. Sobretudo, pela desagradável familiaridade. Quando, enfim,
vingará o amor entre Florentino Ariza e Fermina Daza? Intrusivos, os
personagens remetiam à própria busca vã de Clara em manter o amor que supunha
ter construído. Não obstante, depois da briga de ontem, tudo parecia em ruínas.
Ele até admitira a existência de uma outra. Seria verdade? Ou uma jogada
infantil para lhe causar ciúmes? Se fosse verdade, será que ele realmente amava
a outra? Como ela seria? Clara sorriu, nervosa, ao pensar que melhor seria identificar-se
com Romeu e Julieta; estes, pelo menos, sacrificaram-se para eternizar o amor.
Melhor a morte do que toda uma vida de desencontros.
Resolveu dar uma volta pelo shopping. Quase todas as
lojas tinham promoções nas vitrines. Imaginou que ela própria, caso não
reatasse seu namoro, seria também uma espécie de produto em promoção. Em todas
as lojas via câmeras que captavam sua presença e a julgavam. Decidida a voltar
ao trabalho, Clara descia rapidamente as escadas rolantes rumo à porta de
saída, embora sobrasse um tempinho para gastar com indagações íntimas sobre o
amor - será que ele ama mesmo a tal moça, será que me amava ou, apesar de tudo,
ainda me ama? Sentia-se cada vez pior à medida em que observava as mercadorias
expostas. Via-se como uma TV de plasma, um par de tênis ou um colar de
brilhantes, à mostra, tentando provar-se atraente, valorizada e ao mesmo tempo
acessível ao homem que lhe recompensasse com afeto, atenção... amor. Mas que
diabos, afinal, significa amor?
De súbito, a loja de roupas íntimas sugou-a para dentro. Mal
dera o primeiro passo, a maldita câmera de segurança voltou-se a ela,
inquisidora: “o que faz aqui uma mulher solitária?” Calcinhas e baby-dolls
dirigiram-lhe outra pergunta: “você nos deseja como armas?”. “Sim!”, respondeu resoluta,
encarando a câmera como quem enfrenta a um inimigo mortal. Autoconfiança, já
lera em alguma revista no cabeleireiro, era a alma do negócio. Hoje, posso até
ser uma mulher solitária; mas, quem sabe, aquela lingerie não mudará o curso da
história. Ato contínuo, lembrou-se das noites que passara com seu amado, das
mãos argutas retirando seu sutiã. Sim, se o sutiã fora protagonista em tantos
momentos, por que em outros não seria aquela lingerie?
Perdida em quimeras, Clara mal notou a aproximação da
atendente. Num rompante, estava à sua frente uma sílfide e, com ela, uma
sensação arrebatadora de impotência. A belíssima jovem, ostentando longos
cabelos negros e sorriso encantador a deixou em pânico ao decifrar seus mais íntimos
devaneios: “Gostou da lingerie, não foi? É infalível, já experimentei. E está
em promoção”. A câmera, zombadora, voltou-se para Clara às gargalhadas: “Percebe,
minha amiga, não basta valorizar-se como produto; é preciso enfrentar a
concorrência”. Clara viu na atendente a dita cuja que lhe roubara o amor. Aliás,
seria mesmo amor? Fitou-a, em inútil tentativa de se revelar soberana, mas incapaz
de esconder a fragilidade. “Sim, gostei...”. A frase incompleta chocou-se como
um desastre automobilístico na fala da atendente, endereçada ao homem que
acabara de chegar. “Oi, amor. Espere um pouquinho, estou atendendo essa
senhora, logo vamos almoçar”. Clara olhou para trás e a imagem a nocauteou como
se fosse um cruzado no queixo. Não teve tempo para simular o semblante de quem
estava sob o controle da situação. A única reação possível foi mudar a direção
do olhar, buscando desesperadamente esquivar-se da atendente, do homem, da
lingerie e da câmera. Mesmo cabisbaixa, não conseguiu deixar de ler a os
dizeres no balcão: “Sorria, você está sendo filmado”.
* Adaptação do
texto homônimo, escrito por Ana Rüsche (Cena II).
Dramamix 2007.
Coleção Primeiras Obras. Imprensa Oficial do Estado de São Paulo
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