sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Mãe

Pedro Aragão (Conto extraído da obra não publicada "Uns Contos Do Samurai")

Via as luzes do mundo, de olhos fechados, enquanto a beijava, não sentia o tempo, enxergava o espaço. Éramos um só; Ela, eu e a remuneração. Cabelos volumosos e pesados contornavam o rosto delicado. O nariz bonito e grande contrastava com o olhar fino e mandante. A boca não falava, mas a garganta produzia ruídos multiformes. As orelhas estavam prontas para o sussurro. Sem nome, sem vida, sem morada, sem voz, sem carinho, com shamisen e com amor, cantarolava a canção herdada pela avó-mãe. A avó-mãe trabalhara outrora no mesmo quarto que, agora, a neta-filha me embalava no colo. Os braços dela eram de moça jovem e as pernas de moça livre que contornavam a flor desejada. As mãos com dedos longos pareciam luvas de seda que acariciavam meu rosto e meus sentimentos. Os pés eram como uma raiz polida por uma beleza natural.

Ela e eu. Não tínhamos nada em comum, só a alcunha bastarda. Não tínhamos mãe. Não a conhecemos, morreu ou fugiu, não sabíamos, não saberíamos, por isso, entregávamos gratuitamente o amor maternal. Tenha calma leitor, lhe explico nosso conceito, o nosso complexo: eu dava de graça as minhas economias, ela dava de graça a sua anatomia.

A essa altura, cabe contemporizar o cenário. Era um lugar escuro e escondido nas estradas de Edo, o convite aos homens com ou sem espadas para o repouso com moças, jogos de azar, música e um bom sakê. Munidos somente de carência, os homens chegavam àquele casarão colossal que dispunha de inacreditáveis centenas de quartos do mesmo tamanho. Não era um casarão com poucos pisos, eu subia cerca de 30 degraus para chegar em meu quarto de costume. Havia comida à venda em abundância e pelo mísero preço de uma moeda de ouro, recebíamos uma noite de cuidados, ou, se preferir, uma noite de pecados.

Voltemos ao quarto onde eu estava.

Pularei os pormenores. Suamos a noite inteira, deitamos na madrugada. Minha musa não era minha exclusiva, porém, eu dela era. Havia uma paixão. Depois de um tempo, enquanto fitávamo-nos, com pena e pouca tinta, eu lhe escrevia um poema; ela me desenhava.

Contemple o poema:

O sol
Que é vida
Bate no mar
Rebate nos seus olhos
E me arrebata
Me mata
Sim, sou a morte
Em busca de um repouso,
De um cemitério de amor
Que pousa em seu seio
O cais me espera...

O poema está incompleto, não me lembro bem, mas prometo ao leitor uma futura adimplência dessas escrituras.

Ela me desenhou. Mostrou-me a gravura. A foto-imaginação de um samurai maior que as montanhas que enfrentava a braços nus um castelo que desmoronava sobre o vale. Confessou-me que a tela era a representação de minha força e de meu garbo. Discordei da força. Eu era de fato, um samurai abastado em decorrência dos muitos serviços feudais prestados. Matava pelas moedas. Matava para subnutrir meus medos. Matava para completar a família de corpos da minha vida. Minha mente foi longe, mas voltei pra minha amante. Com voz de cansaço e o tilintar costumeiro de um sino, ela me informava o fim da noite, início do dia, meu tempo acabara e o relógio da realidade precisava ser religado.

Segui pro meu labor com vontades e sem saudades.

O que eu percebo é que os civis de hoje em dia não entendem a importância de deixar os lamentos da vida mal vivida em suas casas. Sou diferente, esqueci a moça. Minha função de vigia no momento solicitava atenção e desprendimento total. Cada movimento estranho detectado na casa de meu Senhor proporcionava uma tensão avessa. O serviço era duro. O dia foi longo.

Dispensado dos meus afazeres, decidi por visitar minha moça novamente. Não tinha esse costume, mas por capricho ou anseio fui atrás dela. Ia a pé. Passei por uma área campestre e decidi usar a floresta como atalho. De longe, já se ouvia a bagunça do casarão, confesso que fiquei ansioso, por isso, aumentei as passadas e soltei de vez as batidas do meu coração, corri. De repente, um eco de uivos me assustou! O cheiro de carne podre e o som dos passos sincronizados denunciaram uma nova situação, estava ilhado entre lobos.

Pouca luz e muitas moitas. Subi a árvore mais alta que avistei. Os lobos cercaram o tronco. A maioria dos lobos estava com ferimentos no corpo que eu não conseguia identificar se foram acometidos por uma peste ou por algum confronto. Entre eles, havia um que perscrutou-me por um tempo. Fiz o mesmo gesto de olhar, nos encaramos durante muito tempo. Nos olhos escuros do animal, via-se um brilho. Como eu não tinha como escapar no momento, deixei o tempo passar e concentrei-me nesse brilho. Enquanto aguardava a chegada do dia para tentar a fuga, comecei a imaginar a estória de vida daquele quadrúpede. Um animal cinzento que nascera na floresta tinha qual propósito? Viera de onde? Vivera para quem? Imagine o leitor comigo, quem cuidaria desses animais, senão eles? Provavelmente existe um código de proteção ou uma espécie de contrato que as matas institucionalizavam aos seus moradores. Instinto não livra ninguém da extinção. Haveria então, um congresso, uma assembleia florestal para cada vida nova. Essa assembleia era espiritual, acontecia apenas em suas mentes irracionais. Cada um saberia seus limites, seus deveres e teria liberdade pautada na sobrevivência. Mas para cumprir este contrato, os animais precisavam de um ente que sinalizasse as nuances de viver em grupo. Um líder capaz de cuidar, mas também, de bronquear sem maltratar. Este líder seria um diplomata abstrato que estabeleceria o tempo e o espaço de cada ser. Mas como seria esse líder? Pensei na figura do Senhor do feudo em que eu era vigia. Um homem dotado de muita inteligência e influência. Porém, é de se notar que o Senhor tinha um senso de justiça pouco admirável, não cuidava bem de seus empregados, e preferia apontar o culpado, ao invés de encontrar a solução do problema. Lembrei então, do meu sensei. Este era um homem que tinha na força e na concentração suas maiores virtudes. Entretanto, era sucinto demais com as palavras. Pensando bem, nunca compreendi os dizeres desse meu mestre. Na verdade, a floresta precisava de alguém mais completo, mais presente e mais coeso. A natureza é incompreensível aos olhos nus, cheia de perguntas e complicada nas respostas. Imaginei muitas pessoas como chefes da mata, mas nenhum cabia no cargo. Repensei a minha pesquisa mental e confrontei os adjetivos e as falhas de todos os pretendentes. Nenhum era capacitado.

A madrugada contínua me presenteou com pálpebras cansadas. Os lobos dispersaram em posição de defesa e preferi aguardar mais um pouco. Minhas divagações se foram e, na falta delas, me pus a pensar na minha moça. Já havia esquecido do meu propósito de ir ao casarão. Pela primeira vez na noite, sentia falta de estar nos seus braços. Ela estaria me esperando? Ou estaria cuidando de outro? O sono me pegou.

Acordei com o alarido das aves! O sol tomara conta da floresta. Olhei em volta e não enxerguei vestígios da matilha. Desci sorrateiro e por entre a mata corri para casa do meu Senhor. Era mais um dia de trabalho, de vigia.

Para evitar que eu ficasse preso na floresta novamente, nunca mais voltei ao casarão. O tempo fez com que eu esquecesse a minha moça, neta-filha que tinha avó-mãe. Procurei outros casarões, encontrei outras moças e continuei buscando o amor materno.