terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Amente - A De Negação

P2A2

5 da tarde, ele é mais um covarde
Mas algum dia, também te faltou coragem
Testa franzida, ela ficou deitada
Garganta seca, disse meia palavra

Voltou no tempo, lembrou do dia inteiro
O celular vibrando, e ela no espelho
Mais uma ligação perdida
Ela já não sentia a culpa da falta... Já não sentia

Se distraía quando ela dizia do futuro seguro,
Pensou que seu presente é inseguro
Passou apuros com a moça do trampo
Insinuante mulher sem descanso, resistiu ao encanto

Enquanto ele se fazia de santo
A mina foi buscar acalanto n’outro canto
Aos prantos, a donzela não perdeu a laia
Seu refúgio foi embaixo de outra saia

Ele cansou de esperar a ligação
Decidiu encontrá-la, então, pegou busão
Ligou pro Rubião, falou da solidão
Que ele ficou na mão, que dói o coração
Ela estava em outra dimensão
Não via estrelas, ensaiava uma canção
Brincadeiras de mão em mão na mão da mão
Tesão, hormônios em ebulição

Cuzão, se fosse mais homem, reclamava
Se fosse menos homem, recuava
Mas preferia ser medíocre, sem palpite
Mas hoje não! Essa mina, vai ver o seguinte...

A porta bateu, mais forte que a alma
A mina percebeu, o mano chegava com calma
Vai embora amante, tem que ser nesse instante
A meliante tremia encostada na estante

Inconstante, mas entrou de mansinho
Viu o vulto de um corpo cruzar seu caminho
Adentrou o quarto, a expressão de cansada
Não pensou duas vezes, apontou a quadrada

Contra a própria boca, acometeu o disparo
Pra menina saiu caro
Remorso que virou um fardo
Um mano farto, furtou a própria vida no quarto

5 da tarde, ele é mais um covarde
Mas algum dia, também te faltou coragem
Testa franzida, ela ficou deitada
Garganta seca, disse meia pala...

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Cidadão Eu

João F. Quirino
Acordo sempre no mesmo horário. Escovo os dentes e tomo o café de costume. Leio o jornal e reajo às notícias. Impiedoso, rogo pragas e penas aos culpados. Culpo a todos: policiais, estudantes e viciados, brancos e negros, presidente, ex-presidente e outro ex-presidente, ministro na berlinda, ex-ministro disso e daquilo, técnico, zagueiro e bandeirinha, evangélicos, gays e até o Papa.
Clamo pela moral e pelos bons costumes, ainda que abomine a expressão. Não concordo com a extradição de uns, lamento a expulsão de uns tantos, execro a permanência de outros. Discordo do arrocho, mas discuto com a diarista se o reajuste é acima da inflação. Culpo o governo pela corrupção, culpo a oposição pela corrupção, culpo os eleitores pela corrupção. Todos iguais, todos iguais!
Preparo-me para mais um dia de trabalho. Penteio o cabelo em estilo clássico. Uso roupas apropriadas. Vou trampar de bike, depois tomo os meus gorós. Passo o dia julgando quem atravessa meu caminho. Elejo inimigos. Transfiro inimigos à posição de amigos e vice-versa. Empunho a espada da indignação irada. Seleciono quem é “do bem” e quem é “do mal”. Sorrio ao lembrar que um dia ajudei o cego a atravessar a rua.
Alerto minha esposa sobre o recato. Tenho ciúmes às vezes, mas não aceito machismo. Sou adulto, vacinado, civilizado, cosmopolita e moderno. Adotei um poodle órfão. Jogo lixo no lixo: plástico, vidro, papel, orgânico e inorgânico. Já fui contra Belo Monte, agora não sei. Luto pelo bom senso e pelo bom gosto, jamais pelo senso comum.
Assisto aos problemas da humanidade sentado no próprio rabo. Peço menos arrogância e moralismo à medida em que me enxergo humilde e libertário. Despejo minha sabedoria no face; dependendo, vou pro blog; com preguiça, eu tuíto. Opino e participo. Denuncio a mídia sem tirar os olhos dela. Pagador de impostos, exijo respeito e serviços de qualidade. Vocifero com a atendente: amaldiçôo a musiquinha e ameaço a empresa que vendeu e não entregou. 
Abro a porta e sigo a vida. Agora, sim. Sinto-me pronto para odiar os conservadores e operar a revolução.

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

O ponto

João F. Quirino

Por mais que esperasse, não conseguiu conter o susto quando o resultado do exame surgiu-lhe como um soco na cara. Não havia mais dúvida. A partir daquele ponto sua vida mudara para sempre. Sua vida se dividia em antes e depois daquele ponto. Logo vieram as perguntas, bem mais intensas do que nos tempos de incerteza. Como reagirão à notícia? Família, amigos, ele; sobretudo, ele. Como prosseguir com aquilo? Como não prosseguir? Que remédio senão aceitar? Pensou na dor. Imaginou o ponto em seu corpo. Um ponto em forma de célula, a se dividir, a se multiplicar, a se ampliar tornando-se outra vida dentro e distinta da sua. Uma sensação estranha de sobriedade invadiu-lhe a alma. Sim, há de ser bom. Quantas lições trará! Devo amá-lo. Haverá um espírito a animar o ponto? Conformar-se é o que resta. Eis a realidade. À luta! Afinal, é a vida...
Por mais que refutasse a possibilidade, surpreendeu-lhe a calma com que escutou o diagnóstico ministrado em jargões médicos. Não havia mais dúvida. A partir daquele ponto sua vida mudara para sempre. Não gostou da imagem: o ponto a separar vida de sobrevida.  Logo vieram as perguntas, bem mais intensas do que quando ainda restava a esperança de ser somente uma falsa impressão. Como reagirão à notícia? Família, amigos, ela; sobretudo, ela. Como enfrentar aquilo? Como não enfrentar? Que remédio senão aceitar? Pensou na dor. Imaginou o ponto em seu corpo. Um ponto em forma de célula, a se dividir, a se multiplicar, a se ampliar levando sua vida a um ponto-final. Uma sensação estranha de sobriedade invadiu-lhe a alma. Sim, pode haver um lado bom. Quantas lições trará! Devo amar-me. Haverá um espírito para além desse ponto? Eis a realidade. À luta. Fazer o quê? É a vida...
Como é bela a vida.